A fúria de
Vulcano em Pompéia
Os moradores de Pompéia nunca souberam
o que os atingiu. Não sabiam o que era um vulcão - a palavra nem existia em
latim. Aqueles que sobreviveram, no entanto, jamais esqueceriam seu impacto
Claudia de Castro Lima | 01/01/2005
00h00
O dia 24 de agosto de 79 amanheceu em Pompéia sem
qualquer prenúncio de anormalidade. O comércio abriu suas portas às 8 horas,
como de costume, mas os negócios estavam abaixo do normal.
É provável que muita gente ainda estivesse
dormindo, já que na noite anterior os moradores da cidade, como de todo o
Império Romano, haviam ido às lutas de gladiadores, peças de teatro e tomado
muito, muito vinho: tudo em celebração a Vulcano, deus do fogo (uma mera – e
incrível – coincidência com os fatos que ocorreriam a seguir).
Situada no pé do monte Vesúvio, às margens do que
hoje conhecemos como baía de Nápoles, Pompéia era uma cidade próspera, com
cerca de 20 mil moradores. Toda murada, tinha uma área urbana – onde se
concentravam residências e casas comerciais como padarias, bares, lavanderias,
bancos e banhos públicos – e uma área rural, ocupada por grandes propriedades
dedicadas à agricultura, onde se plantando quase tudo dava: principalmente
trigo, azeitona e uva para a produção do famoso vinho da cidade.
O centro urbano de Pompéia consistia de uma parte
mais antiga, construída pelo povo itálico séculos antes de a cidade tornar-se
colônia romana, em 80 a.C., e outra mais recente, com duas ruas principais, que
cortavam a cidade nos sentidos norte-sul e leste-oeste, e quarteirões
regulares. “
Além da agricultura favorecida pelas terras
produtivas da região, era o porto às margens do mar Mediterrâneo que garantia a
saúde econômica de Pompéia”,
diz a historiadora Lourdes Condes Feitosa, da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Barcos chegavam o tempo todo
trazendo comerciantes estrangeiros, sobretudo fenícios. Podia-se comprar de
tudo no porto de Pompéia, desde macacos africanos e canela da China até
escravos e escravas orientais, famosas por seus truquezinhos sexuais. E
circulava muito dinheiro por ali.
“A elite local era formada na maior parte por
proprietários rurais, que tinham casas no campo e também na costa de Pompéia, à
beira-mar, com marinas particulares e seus próprios barcos”, afirma o
arqueólogo Pedro Paulo Funari, da Unicamp, autor de A Vida Quotidiana na Roma
Antiga.
Além deles, faziam parte da elite os donos das
lojas mais sofisticadas, casas de banho e indústrias de tecido. Os comerciantes
eram o que hoje chamamos de classe média e moravam, geralmente, em casas
construídas sobre seus estabelecimentos. Com eles normalmente moravam seus
familiares (pais, filhos, irmãos, avós) e escravos.
Na base da pirâmide social ficavam os trabalhadores
rurais.
Ricos e pobres, todos se achavam abençoados por
morar em Pompéia. Eles acreditavam que a fertilidade da terra era um presente
dos deuses e não desconfiavam que o solo tinha tanta qualidade por causa de
antigas erupções do Vesúvio.
Aliás, eles
nem sabiam o que era um vulcão. Tanto que, na época, sequer havia uma palavra
em latim para designar o vulcanismo. Para eles, o Vesúvio era apenas uma bela
montanha: um calado e amistoso vizinho. Por isso, o mar agitado dos dias
anteriores àquele 24 de agosto e o leve tremor de terra que fez o vinho
balançar dentro dos cálices na festa de Vulcano não foram interpretados como
sinais de perigo.
A quinta-feira era apenas mais um dia de calor.
Eram pouco mais de 10 horas quando um forte estrondo foi ouvido. Seguido de um
abalo. No horizonte, uma densa nuvem preta se ergueu sobre o Vesúvio.
A 30 quilômetros dali, um dos mais brilhantes
homens de seu tempo escutou o barulho. Em sua casa de campo em Miceno, estava
Plínio, o Velho, uma das maiores autoridades em fenômenos naturais da época
(uma espécie de Darwin do século 1) e autor dos 37 volumes de História Natural.
De acordo com o pesquisador Andrew Wallace-Hadrill,
diretor da Escola Britânica em Roma e especialista em Pompéia, Plínio foi
surpreendido pela explosão do Vesúvio. “Até aquela data, a única coisa que ele
havia registrado sobre o assunto foram as marcas de queimada no topo do
Vesúvio”, afirma Wallace-Hadrill.
Hoje se sabe que a última erupção do Vesúvio antes
daquela manhã havia ocorrido por volta de 1800 a.C.
Mas em breve não haveria mais dúvida de que algo
único estava acontecendo. Em poucos minutos, a ensolarada manhã virou noite. A
espessa e escura fumaça liberada pelo Vesúvio subiu para a atmosfera e bloqueou
completamente o sol.
Plínio, o Jovem – sobrinho do Velho, que estava com
ele em Miceno e foi o autor do principal documento sobre a erupção do Vesúvio
(leia boxe na pág. 29) –, testemunhou a cena: “Dificilmente podíamos ver as
coisas, parecia noite, não como quando desaparece a lua ou fica nublado, mas
como em um lugar fechado e sem luz”, escreveu numa carta enviada para o amigo e
historiador Tácito.
Impressionado com a noite no meio do dia e com o
barulho, o povo saiu às ruas, curioso para ver o espetáculo. Pouca gente – ou
ninguém – deve ter se dado conta do risco que corriam. É que aquela nuvem negra
não era só fumaça. Junto com as cinzas, o Vesúvio lançou na atmosfera toneladas
de rochas a uma altura tão grande – algumas devem ter atingido 10 mil metros –
que elas só começaram a cair minutos depois da explosão inicial. “
As primeiras vítimas devem ter sido atingidas pela
chuva de pedras e, em seguida, com o acúmulo de detritos sobre os telhados,
pelos desabamentos”, diz Fabrizio Pesando, professor da Universidade de Nápoles
e co-autor do livro Pompeii (“Pompéia”, inédito no Brasil).
Quando as pedras começaram a cair do céu, Julius
Polibius mandou reunir toda sua família na parte de trás de sua casa, que
passava por uma reforma. Filho de um escravo liberto e cheio de ambições
políticas, Polibius tornara-se um próspero comerciante.
Naquele ano, ele era candidato ao cargo de aedile,
uma espécie de vereador, responsável por conservar os bens públicos. Polibius
chamou a mulher, filhos e escravos e se puseram a rezar.
Não deu certo. “Junto com as pedras, caiu sobre a
cidade uma nuvem de gases tóxicos. Assim, nas casas afastadas e resistentes, o
Vesúvio matou por asfixia”, afirma Pesando. Dos 13 corpos encontrados na
residência de Polibius, 15 séculos depois, alguns estão abraçados, há um casal
deitado na mesma cama, outro ajoelhado.
Se Polibius e a família preferiram ficar e rezar
(quem sabe não conseguissem fugir com uma das mulheres em adiantada gravidez),
outros resolveram seguir a opção aparentemente mais óbvia: correr. Não
adiantou. “Muita gente deixou suas casas percebendo o risco que corria lá
dentro.
Os vestígios arqueológicos indicam que homens,
mulheres, crianças e idosos saíram com colchões e almofadas sobre as cabeças,
tentando se proteger das rochas ferventes que caíam do céu. Muitos levavam
consigo todos seus bens: jóias, moedas, estátuas, prataria e a chave da porta
da frente”, diz Pesando.
Uma mulher, de cerca de 30 anos, morreu do lado de
fora de um hotel. Levava consigo uma certa quantidade de jóias, incluindo um
bracelete de ouro com a inscrição: do mestre para sua escrava. Um homem de
negócios, que carregava pelas ruas uma bolsa cheia de ouro, morreu sentado,
encostado em uma pilastra.
Mesmo quem resolveu aproveitar a fuga em massa para
tentar enriquecer deu-se mal. Um saqueador morreu sobre o telhado da “Loja do
Salvius” (é exatamente essa a inscrição sobre a porta da casa onde foi
encontrado), que vendia anéis e peças de ouro.
Uma rica e elegante senhora, usando jóias caras,
foi soterrada no galpão em que moravam os gladiadores. Estranho lugar para
encontrar uma jovem patrícia. O que ela fazia lá? As especulações dos
arqueólogos são de que ela era uma das mulheres entediadas que, à procura de
aventura, prestava certos favores aos gladiadores. A nobre dama teria sido
surpreendida pela erupção numa de suas visitas clandestinas. Ou, quem sabe,
vendo-se condenada pelo vulcão, escolheu essa como a melhor forma de morrer.
Quem sabe?
Em Miceno, Plínio, o Velho, assistia de camarote à
densa fumaça preta que subia do Vesúvio, quando resolveu ver aquele fenômeno
mais de perto. Ele mandou preparar um pequeno barco, convocou uma tripulação de
nove homens e pouco antes das 5 da tarde se pôs a caminho de Pompéia.
A viagem mostrou-se uma péssima idéia. Ao se
aproximarem da cidade, as altas temperaturas e um densa neblina negra fizeram
com que o barco se desviasse de seu destino. O jeito foi ancorar na vizinha
Estábia. O desvio salvou sua vida. Pelo menos por mais algumas horas.
“Em Pompéia a chuva de pedra já durava pelo menos
12 horas e praticamente toda a cidade estava soterrada sob cerca de 4 metros de
rochas vulcânicas, quando o pior aconteceu”, diz Wallace-Hadrill.
À escuridão das sombras das nuvens de cinza,
juntou-se o negrume da noite. Por isso, e porque não restassem muitas
testemunhas no local, talvez ninguém tenha visto quando a parte mais letal da
erupção se aproximou. “
Viajando a uma velocidade superior a 120
quilômetros por hora, uma avalanche de cinzas e rochas superquentes, com
temperaturas que ultrapassavam os 500 graus Celsius desceu sobre a cidade.” No
total, 4 quilômetros cúbicos de material foram ejetados pelo Vesúvio.
Herculano
Situada na costa oeste do Vesúvio, Herculano também
viveu um inferno. Provavelmente beneficiada pela direção do vento, a cidade não
sofreu tanto com a chuva de pedras. No entanto, o relevo da região não foi tão
piedoso com os moradores de Herculano. “Em direção a Herculano, a avalanche de
pedras foi muito mais violenta e destrutiva que em Pompéia”, diz Pesando.
Pressentindo que o pior estava por acontecer,
milhares de pessoas fugiram de suas casas e foram em direção à praia. Com eles,
levaram tudo o que podiam carregar. Na fuga, a confusão se instalou. Bebês
choravam, maridos procuravam as esposas que haviam se perdido no caos. Poucos
conseguiram chegar até à praia. “A velocidade da avalanche deve ter chegado a
mais de 100 quilômetros por hora e a maioria morreu no caminho.”
Alguns chegaram à praia, pensando que até ali a
enxurrada de pedras perderia força e que estariam seguros de desabamentos. Eles
estavam certos. Porém acabaram mortos: não sobreviveram à intensa onda de calor
e aos gases venenosos que atingiram a cidade. Mais de 300 esqueletos foram
encontrados num abrigo de barcos. A morte para eles foi instantânea: o choque
com a onda de calor fez seus órgãos vitais ficarem paralisados antes mesmo que
eles se dessem conta do que estava acontecendo.
Muitos
estavam abraçados. Outros em posições relaxadas, como se achassem que estavam a
salvo. A cidade, onde moravam 5 mil pessoas, ficou enterrada em 23 metros de
pedras e cinzas.
Na manhã do dia 25, o Vesúvio ainda não havia
cansado. Antes das 7 da manhã, uma nova nuvem atingiu Pompéia. Quem ainda
estava lá e não morreu queimado atingido pelas rochas incandescentes acabou
sufocado pelos gases.
A nuvem seguiu em direção a Estábia. Os moradores
perceberam-na atravessando a baía, tentaram correr, mas não havia para onde. Os
gases vulcânicos fizeram centenas de vítimas, entre elas Plínio, o Velho.
Seu sobrinho, em Miceno, escreveu tudo o que pôde
ver e apurar depois. Seus relatos eram tão bizarros que durante muito tempo
foram considerados lendas e desacreditados pelos cientistas até o século 18.
Hoje em dia, sabe-se que existem sim erupções vulcânicas como Plínio contou.
Tanto que eventos daquela magnitude, com explosões
de gases, vapor de água e material piroclástico jogados a grandes altitudes são
chamados de erupções plinianas.
Não se sabe exatamente quantas pessoas morreram em
Pompéia, Herculano, Estábia e redondezas. “É impossível precisar quantas
pessoas conseguiram fugir por mar ou que sobreviveram ao inferno provocado pela
erupção do Vesúvio”, diz Pesando.
Segundo ele, a simples recuperação de corpos
indicaria um número entre 2 mil a 4 mil vítimas. Mas outra linha de
pesquisadores, que toma como base os registros de moradores da região, acredita
que o mortos podem chegar a 17 mil.
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